MAHMUNDI “AMOR FATI”: UM ABRAÇO NO TEMPO

Esse — ou melhor, este — é pra estourar fora da bolha. É pra estourar a bolha, estourar no norte, no resto do país, e quem sabe deixar uns gringos “mindblown” também. Mahmundi chega ao quarto álbum da carreira com uma respeitabilíssima trajetória sem se afastar do escaninho pop e sem medo de gastar o latim de filósofos alemães já no título. “Amor Fati”, expressão usada por Friedrich Nietzsche (1844-1900), significa “amor ao destino”, conceituando uma aceitação integral da vida em todos os seus aspectos, bons ou ruins; um abraço no que a vida nos oferece e também no que ela nos priva ou retira da gente.

E de onde saiu esse tem mais, tem todo um arsenal de abraços que a cantora e compositora divide com o mundo nas dez faixas do novo projeto. Aos 36 anos, criada em Marechal Hermes, zona norte do Rio, mas, radicada há quatro meses em São Paulo — “em terceira temporada” na cidade, destaca — ela trabalha em paz com as novas tecnologias, as novas formas de chegar aos ouvidos das pessoas e também com as diversas maneiras de desfrutar música pop hoje. Atenta às revoluções feitas por jovens como Billie Eilish, Mahmundi sabe que nem tudo que viraliza é superficial, nem tudo que é supernovo é imaturo, e que o algoritmo também pode espalhar qualidade.

Como boa ex-técnica de som, ela sente fascínio pelos fronts de áudio e abraça até o que chama de “guerra digital”. “Essa guerra é o mundo acontecendo. Amo como o som tem se desdobrado nas plataformas”, diz Mahmundi. Evidentemente, “Amor Fati” não é música feita para “chartear”, calculada para entrar nos charts. Mas é um trabalho construído, como cantava Jonathan Richman num velho rock new wave, “in love with the modern world” (“apaixonado pelo mundo moderno”), bem adaptado ao formato como a música se reinventa nos dias de hoje.

Mahmundi menciona com entusiasmo a atenção diferenciada aos conteúdos audiovisuais do projeto, que conta com a direção criativa de Guilherme Junqueira e a sensibilidade do cineasta Pablo Aguiar, diretor do vídeo do single“Noites Tropicais”.

A música foi composta durante uma estadia em um hotel localizado de cara para o Pontal, na zona oeste do Rio, com o som das marés e dos fortes ventos impulsionando a inspiração. O resultado é pop de quem transa, de quem namora, de quem tá bem aceso na existência. “Mergulhar em tua boca, onda/ Corpo fantástico, junto/ Abraçamos o tempo/ Inventamos o nosso mundo”, canta Mahmundi.

A primeira faixa do álbum, “Amanhã” (parceria de Mahmundi com o potiguar Filipe Toca), com o groove elegante de Julio Raposo (guitarra e baixo), também vem com esse clima de Rio de Janeiro sem pedir desculpas, citando bossa nova e carnaval em uma visão meio Prince (sexo/religião) na letra: “ela me levou pro céu e eu nao quero mais descer”.

É com essa pulsão de vida que Mahmundi avança por uma eletrônica peculiar e humanizada, cantando direto no ouvido das pessoas, fazendo companhia e trilha para a vida delas, a partir dos headphones. Foi o movimento natural da artista depois do álbum “Mundo Novo”, mais madeiras e cordas que todos seus trabalhos anteriores. O disco saiu no começo da pandemia, em 2020, involuntariamente em um momento de muita incerteza, em meio a aterrorizante escalada na contagem de corpos.

Agora, depois de três anos de muitas e diversas leituras, de neurolinguística e Lacan a livros de coach, também três anos mais distante da vivência religiosa que a iniciou na música, Mahmundi canta com leveza sobre amores, desamores e algumas das interseções entre esses dois territórios. Entre cascatas de synths e um delicioso groove de festa sunset, “Peraí” (parceria com Lôu Cascudo e Lux Ferreira) anestesia um desencontro libertador: “Peraí/ Eu tenho tanta coisa pra fazer/ E a primeira é deixar/ É deixar você”.

Boa parte do repertório (sete inéditas, mais a regravação de “Versos Não”, de Quinho, gravada pelo autor em 2008, e “Meu amor – Reprise”, releitura de parceria de Mahmundi com Roberto Barrucho, registrada originalmente em 2016).

Mas isso está longe de significar que Mahmundi tenha se rendido ao artificialismo dos feats entre artistas com afinidades pouco reais. As parcerias envolvem sempre uma vivência, um rolé. Com Zarashi, trapper carioca, que ela conheceu pesquisando no Spotify, a aproximação envolveu nights no Konteiner, casa noturna na Vila Cruzeiro, e incursões à Mangueira. Assinada por ele com Mahmundi, “Brisa 22” se aproxima do reggaeton nas batidas e do trap nas escolhas de timbre, chegando junto também no texto “tô contigo, bebê/ tô contigo, bebê/ tô tranquilão com você/ parou o meu trem/ botou pra foder”.

As canções novas surgiram ao violão, na guitarra, nos sintetizadores ou no laptop, e foram tomando forma a partir da troca com Pedro Tie, que assina como codiretor de produção, coautor da maioria dos arranjos e também parceiro mais frequente de Mahmundi no disco (em “Noites Tropicais” e em três outras faixas). A eletrônica dá a tônica, mas sempre bem harmonizada com um calor sonoro, trabalhado de forma admirável na mixagem de Pedro Calloni, feita em Los Angeles e duas faixas mixadas por Thiago Abraao, em São Paulo.

Mahmundi coloca a voz no global com uma carioquice intrínseca, mas quase discreta, sem clichê, mesmo em linguagens e melodias ocasionalmente próximas do r & b. É o que acontece em “Sem necessidade”, faixa com vibe poderosa que tem a única participação especial do álbum — de Tagua Tagua, projeto do produtor gaúcho Felipe Puperi — e que ganha um bis em forma de remix. Em “Diamante”, a programação eletrônica de Pedro Tie e as guitarras de Leandro Donner fazem o contraste perfeito com a interpretação vocal elegantíssima de Mahmundi, sem um mísero “uh” a mais do que pede o recado doce sensual da letra: “Baby, a gente pode tentar? / Quero um pouco de você/ Só de pensar em te ter aqui/ Ter teu corpo pra deslizar/ Dentro desse nosso querer”.

“Fugitivos” trabalha uma babilônica urbanidade reggae que trai traços brasileiros mesmo ao proclamar, meio à moda Titãs, protagonistas “fugitivos, fora do padrão/ a gente não é daqui, não/ sou de todo lugar”, surgiu de song camps, oficinas de composição com encontros entre compositores e aceleração de processos criativos.

Perto do final, “Meu Amor_Reprise” revisita o formato banda de rock, com a guitarra de Christian Dias, o baixão de Antonio Neves e a caixa do baterista Gabriel Lodo fechando um ciclo em grande estilo. Lana Del Rey curtiria o climaço. “Eu sou muito feliz com o que estou fazendo”, comemora Mahmundi. Dá pra notar e se deixar contagiar — é o destino.

Pedro Só
Jornalista musical, crítico, roteirista, pesquisador e acumulador de discos e livros (Museu da Tralha e do Som)