Universal Music Brasil lança edição especial de “Gita”, prensada em vinil vermelho, no dia do aniversário de 80 anos de Raul Seixas
Leonardo Lichote
Raul Seixas e Paulo Coelho conversavam sob a noite estrelada de Dias d’Ávila, pequeno município baiano onde se localizava o sítio da família dos pais do cantor. A dupla passava ali uma temporada de descanso depois do sucesso de “Krig-ha, Bandolo!”, disco de estreia de Raul lançado em 1973. O papo chegou ao livro sagrado indiano “Bhagavad-gita”, mais especialmente ao trecho no qual o deus Krishna se descrevia para o guerreiro Arjuna: “Eu sou a morte que tudo devora, e Eu sou o gerador de todas as coisas ainda por existir. Eu sou as mulheres, Eu sou a fama, a fortuna, a fala, a memória, a inteligência, a fidelidade e a paciência”.
Daquela troca saiu, em menos de 10 minutos, a letra completa de “Gita” — de versos como “Eu sou o início, o fim e o meio”. A parceria de Raul e Paulo batizaria e daria o tom místico do histórico disco que eles lançariam meses depois, em 1974. Agora, em celebração aos 80 anos do baiano, que são celebrados no dia 28 de junho, a Universal Music Brasil relança “Gita” no formato LP, numa edição prensada em vinil vermelho, que já está em pré venda na UMusic Store. Confira aqui: https://www.umusicstore.com/raul-seixas .
A imagem de Raul na capa, de guitarra e boina vermelhas, dedo em riste, se dirigindo no microfone à multidão que não aparece na foto, projetava a imagem de líder guerrilheiro, guru, profeta que se consolidaria a partir dali. O selo da Sociedade Alternativa no canto inferior esquerdo dava um ar misterioso e oficial às ambições que o cantor apresentava no disco. Nada menos que fundar um novo modelo de organização social, que, em plena ditadura, questionava autoridades, instituições como o casamento, a noção burguesa da felicidade — tudo em nome da potência individual de cada ser humano, sintetizada nos versos “Faze o que tu queres/ Pois é tudo da lei”.
O disco traz oito parcerias de Raul e Paulo — oficialmente, pois o autor de “Diário de um mago” argumenta que ele compôs sozinho uma delas, “Medo da chuva”, atribuída à dupla. As outras quatro têm apenas a assinatura de Raul. Todas as canções orbitam, de alguma forma, em torno da ideia da Sociedade Alternativa, desenhada a partir dos ensinamentos do ocultista britânico Aleister Crowley, citado, inclusive, num verso do álbum.
Mesmo tendo o misticismo e as ambições revolucionárias como núcleo, o disco não abre mão do humor — quase sempre ácido — de Raul. Além disso, o artista não tinha o menor desejo de propor manifestos herméticos, para iniciados. Mirava no sucesso popular, nas massas — e a linguagem direta de suas canções, na música e nas letras, reflete isso. Como ele defendeu em entrevista feita exatamente em 1974, ano de lançamento de “Gita”:
“Eu escolhi o caminho da música por ser o meio mais fácil de chegar ao povo. Abandonei o livro porque o Brasil não lê. Abandonamos o teatro, porque o teatro está em plena decadência. Não queremos esquemas underground fechados, porque é hora de abertura, é hora de você abrir o jogo. (…) Eu faço música comercial. Botei oitenta e cinco músicas na parada de sucesso e quero continuar botando. Nunca parar. Tá legal?”.
Seu objetivo de comunicar sem rodeios é confirmado já na primeira faixa do disco, “Super heróis”. Depois da introdução rock’n’roll clássica, com a guitarra do fiel escudeiro Rick Ferreira, Raul abre alas decretando feriado em plena segunda-feira e trazendo, num tom algo debochado, um desfile de ídolos pop daquele momento: o apresentador Silvio Santos, o enxadrista Mequinho, o piloto Émerson Fittipaldi, o jogador Pelé.
“Medo da chuva” contesta a ideia do casamento como algo inquebrável. “É pena/ Que você pense que eu sou seu escravo/ Dizendo que eu sou seu marido e não posso partir”, diz a letra. A ideia original era de que ela fosse gravada como uma canção sertaneja de maneira mais marcada, com as duas vozes da tradição caipira — Raul chegou a registrá-la assim. O produtor Marco Mazzola, porém, não aprovou.
Apontada por Raul na época como a sua favorita no disco, “As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor” combina rock’n’roll e raiz nordestina — num estilo que o cantor cravou como assinatura em “Let me sing, let me sing”, apresentado no Festival Internacional da Canção, em 1972. Nos versos do repente, ele manda recados como “A arapuca está armada/ E não adianta de fora protestar/ Quando se quer entrar num buraco de rato/ De rato você tem que transar”.
Inspirada no poema cristão “Cantar da alma que se regozija de conhecer a Deus pela Fé”, de São João da Cruz, “Água viva” se sustenta sobre um belo arranjo de cordas — vale a menção às orquestrações do disco, assinadas por Miguel Cidras, que valorizam com bom gosto e personalidade todas as faixas em que estão presentes.
“Moleque maravilhoso” nasceu de uma frase que Paulo Coelho viu num adesivo de para-choque nos Estados Unidos: “I don’t make little mistakes, I only make earthquake”. A frase é traduzida no primeiro verso da canção de arranjo à la Sinatra: “Eu nunca cometo pequenos erros/ Enquanto eu posso causar terremotos”. Para evitar problemas com a Censura, o letrista inseriu a figura do título para tirar um tanto do tom de afronta da música: “Eu sou um moleque maravilhoso”.
Pinçada do disco coletivo que Raul lançara em 1971 ao lado de Sérgio Sampaio, Edy Star e Miriam Batucada, “Sessão das 10” mergulha na linguagem do bolero brega seresteiro — dentro da veia paródica que o baiano exercitava tão bem. A história de amor dramática e derramada termina com a voz forçadamente embargada do cantor.
“Sociedade Alternativa” é o manifesto sobre o qual o disco se organiza. Trafegando entre o nonsense (“Se eu quero e você quer/ Tomar banho de chapéu/ Discutir Carlos Gardel/ Ou esperar Papai Noel”) e o épico (o coro de “Viva a Sociedade Alternativa” repetido de forma marcial), a canção se tornou um dos símbolos de Raul. Mesmo com sua proposta de revolução em tempos de autoritarismo, ela ganhou clipe no programa “Fantástico”, da TV Globo, uma enorme e cobiçada vitrine. Em 2013, ela reafirmou sua força ao ser cantada por Bruce Springsteen no Rock in Rio.
Cruzando, numa linguagem oracular, memórias da infância e referências ao Apocalipse, “Trem das 7” fascina por sua linguagem interiorana, simples, que cresce na direção da imponência final. A ideia do bem e do mal de braços dados reflete a influência de Aleister Crowley sobre aquela fase do cantor. A letra traz também referência a uma nova era cósmica, o “Novo Aeon” — termo que viria a batizar seu álbum seguinte.
“S.O.S” conversa com “Ouro de tolo” em sua denúncia do vazio da existência da classe média, “lá por detrás da triste, linda Zona Sul”, e na atenção ao disco voador como símbolo de algo que está além dessa realidade limitada. Sua melodia traz semelhanças impressionantes com “Mr. Spaceman”, lançada pela banda americana The Byrds oito anos antes — o que não era raro na trajetória de Raul.
Vinheta de pouco mais de um minuto, “Prelúdio” versa sobre o sonho e o real a partir de uma estrutura que evoca a canção de ninar, repetindo a reflexão: “Sonho que se sonha só/ É só um sonho que se sonha só/ Sonho que se sonha junto é realidade”. Trata-se da adaptação de um texto atribuído erradamente a Miguel de Cervantes, supostamente numa fala de Dom Quixote.
Composta anos antes mas perfeitamente adequada ao espírito do disco, “Loteria da Babilônia” simula uma performance ao vivo — referência à apresentação que Raul fizera da canção no show Phono 73. A letra, inspirada num conto homônimo de Jorge Luis Borges, provoca o personagem a quem ela se dirige, que parece saber tanto e nada: “Você não tem perguntas pra fazer/ Porque só tem verdades pra dizer”.
Depois de “Gita”, faixa-título descrita na abertura deste texto, o álbum segue com “Um som para Laio”. Canção menos lembrada do disco, ela fez parte da trilha sonora da novela “O rebu”, encomendada à dupla Raul e Paulo — Laio era o personagem de Carlos Vereza na trama. A letra desafia o interlocutor: “Trago um par de fones nos ouvidos/ Pra não lhe escutar/ O que você tem pra dizer/ Ouvi há cem anos atrás”.
O álbum se encerra com um imperativo: “Não pare na pista”. Foi composta na mesma viagem ao sítio onde nasceu “Gita”, a partir das placas que Raul e Paulo viam na estrada. A mensagem é direta — ao Brasil de então e ao de hoje, aos ouvintes de então e de hoje. Não ficar parado enquanto a vida e o mundo seguem velozes. Aos 80 anos, ainda vale o chamado do canto de Raul nos versos finais: “Meu bem, me dê a mão/ Que eu vou te levar/ Sem carro e sem medo/ Pra outro lugar”.
Lista de faixas de “Gita”:
Lado A
1 – Super Heróis (Raul Seixas / Paulo Coelho)
2 – Medo da Chuva (Paulo Coelho / Raul Seixas)
3 – As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor (Raul Seixas)
4 – Água Viva (Paulo Coelho)
5 – Moleque Maravilhoso (Raul Seixas / Paulo Coelho)
6 – Sessão das 10 (Raul Seixas)
Lado B
1 – Sociedade Alternativa (Paulo Coelho / Raul Seixas)
2 – O Trem das 7 (Raul Seixas)
3 – S.O.S. (Raul Seixas)
4 – Prelúdio (Raul Seixas)
5 – Loteria da Babilônia (Raul Seixas / Paulo Coelho)
6 – Gita (Raul Seixas / Paulo Coelho)