Novo disco de Lou Garcia combina ritmos em 14 faixas que exploram o conflito entre razão e desejo

“Literalmente” é um advérbio que dá concretude real a algo. “Devaneio”, por sua vez, é substantivo que dá nome ao que não é real, que se sonha, que se deseja, que se inventa. “Literalmente Devaneios” (Universal Music Brasil), segundo disco de Lou Garcia, encena essa colisão em linguagem saborosamente pop ao longo de suas 14 faixas. Nesta declaração de duas palavras, a cantora e compositora afirma que seus devaneios são literais, que sua confusão emocional é fato verificável, que seu sentimento é tão etéreo como palpável. E que tudo isso mora no espaço entre a boca e o coração — aquilo que você diz enquanto sente o contrário.

Junto ao álbum, que acaba de chegar às plataformas de streaming, Lou Garcia também faz hoje a estreia de 12 visualizers das faixas do projeto. Assista aqui: https://www.youtube.com/@lougarciaa/videos .

“Eu queria trazer a ideia de opostos no título. E que tivesse um pouco essa coisa da loucura”, explica Lou. A palavra “devaneios” fica ancorada em um “literalmente” que, para além de seu sentido original, é quase uma etiqueta da Geração Z — a expressão “literalmente eu” como maneira de afirmar identificação com uma situação ou personagem.

O estopim do disco se deu num song camp — como são chamados os encontros nos quais compositores ficam imersos por dias com o intuito de criar canções — no Rio de Janeiro. Na época, Lou atravessava o fim de um relacionamento, e isso se refletiu na produção. “Eu estava muito mal”, lembra a cantora, que vivia o fim de um relacionamento — ela não sabia que depois a crise se resolveria numa reconciliação. “Eu escrevi muito pra me curar mesmo. As primeiras músicas que surgiram foram as mais tristes: ‘Fique Bem’, ‘Puro Amor’, ‘Subconsciente’… [compostas em parceria com Donatto, Carolzinha e Breder]”. O que começou como desabafo virou o eixo de um projeto que organiza, em forma de canção, o caos emocional de um período.

Em “Literalmente Devaneios”, Lou transforma esse impulso íntimo em estrutura artística, com uma produção inventiva e um conceito coeso. O amadurecimento da compositora se revela tanto nas letras como na arquitetura sonora. Em contraste com o primeiro álbum, “Karuma” (2023), de recorte mais synth-pop e atmosfera oitentista, o novo trabalho amplia o campo de referências. “Sinto que amadureci muito na composição. As letras são totalmente diferentes. Agora eu também consegui brincar mais com melodias e mostrar mais a minha voz”, diz Lou.

A expansão tem relação direta com o processo colaborativo. O disco — produzido por Donatto, Gustavvo, Iuri Rio Branco, Kassin, Enzo di Carlo, TIN e ProdJot4 — cria uma paisagem de pop eletrônico atmosférico, combinando timbres digitais, R&B alternativo, indie-pop e gêneros brasileiros como piseiro, funk e pagodão. Lou teve participação ativa: “Eu estudei produção musical, metia muito o dedo nas coisas”, conta a artista. “Teve músicas como ‘Magia’ e ‘Reservado’ que começaram de um jeito e viraram algo completamente diferente”.

Essa diversidade de produtores reflete a amplitude sonora do disco e o desejo de Lou de testar fronteiras dentro do formato pop. O resultado contempla interioridade e exuberância. A cantora se coloca no centro, mas sua voz — de timbre ora doce, ora vibrante, ora melancólico — é tratada como matéria sonora. “Sempre sinto que a voz tem que estar dentro do instrumental, não acima dele”, explica. Essa decisão aproxima o disco de uma linhagem internacional que inclui Billie Eilish, The Marías e Isabel LaRosa — artistas que ela admira e ouve bastante.

“Solidão Com Vista Pro Mar”, faixa de abertura, começa com um verso de “Não sei dançar”, música de Alvin L. lançada por Marina Lima. A citação funciona como senha estética e simbólica, expressão dos contrastes que guiam o disco desde o título. O arranjo mistura sensualidade e contenção. A letra oscila entre negação e desejo, com o “não quero” ecoando como “quero, quero, quero”. “Escrevi a música me imaginando num triângulo amoroso entre o sol e a lua, entre a escuridão e a luz”, conta Lou, expondo, mais uma vez, a ideia central da dualidade.

O jogo entre corpo e controle reaparece ao longo de todo o álbum. Em “Magia”, o erotismo assume forma direta, amparado por batidas de piseiro e ecos do pop dos anos 2000. Mas “com uma vibe de câmera lenta”, como ela define. O gesto de cruzar gêneros populares brasileiros com moldura pop global é uma das chaves do álbum.

Já “Subconsciente” transforma a memória em fantasma persistente. Uma canção sobre o desejo que continua ativo mesmo depois da separação. Em seus ecos e efeitos, a faixa — que ocupa o centro simbólico do projeto e não à toa foi escolhida para o primeiro clipe — sugere o espaço mental do qual Lou fala.

“InterLúDio” faz a ponte entre “Subconsciente” e “Eu Vou Dizer”. Nesta, a dor do rompimento é decupada numa letra de sofrimento rasgado, mas filtrado por um beat de funk que dá ao drama um tom de ironia. Em “Vozes Da Minha Cabeça”, essa ambiguidade chega ao auge: o canto sussurrado, repleto de ar e respirações, transforma o desejo em delírio.

“Sinais”, primeiro single, marca o ponto de virada estética. “Sinais foi uma virada pro álbum. Eu falei: ‘vamos guiar tudo pra esse lado’”, conta Lou, referindo-se à atmosfera mística e onírica. A canção traz versos sobre coincidências e destino. Já “Peculiar” retrata a paixão absoluta com ingenuidade e devoção (“Tô cega pro amor que eu encontrei”), mas o arranjo de latinidade lenta e o canto contido revelam consciência sobre o próprio exagero.

“Pior Que Eu Amo”, por sua vez, traz o amor em estado de ambiguidade: o “quase” como um desconfortável lugar de habitação emocional. “Pior que eu amo, eu amo tanto, é estranho”, diz o refrão. “Fique Bem” volta ao ponto de origem do disco — o desabafo que gerou tudo. Balada clássica, é a súplica mais direta do repertório: um pedido para que o outro fique, ou pelo menos “fique bem”. O contraste entre a doçura melódica e o uso da expressão “porra nenhuma” é mais um desses momentos que parece sintetizar o conceito de “Literalmente Devaneios”.

Na reta final, o álbum muda de temperatura. “Sexta-feira” retoma o espírito corporal do funk carioca noventista, celebrando o prazer e a liberdade. “Escandalizar” intensifica a sensualidade com acento latino e perfume oriental. “Reservado”, inicialmente composta como piseiro e transformada em pop eletrônico, fecha o ciclo com leveza. O desfecho soa como retorno à serenidade após a vertigem.

Ao fim do trajeto, o disco deixa em seu rastro a investigação do descompasso entre o que se diz e o que se sente. Lou canta o conflito entre autocontrole e entrega, entre lucidez e vertigem. “Não gosto do que é totalmente sóbrio”, diz a cantora, que nota que seu nome carrega um fragmento da palavra “loucura”. “Gosto da ideia de imaginar coisas que, na verdade, você vê. Porque eu sinto que o importante é como você enxerga o mundo. Esse álbum tem muito essa visão de como eu quero que as coisas sejam”. Devaneio e literalidade, enfim.

Repertório álbum “Literalmente Devaneios” – Lou Garcia:

1 – “Solidão Com Vista Pro Mar” (Lou Garcia / Marina Lima / Carolzinha / Donatto) – sample Marina Lima
2 – “Magia” (Lou Garcia / Vitão / Donatto)
3 – “Subconsciente” (Lou Garcia / Breder / Carolzinha / Donatto)
4 – “InterLúDio” (Lou Garcia / Breder / Carolzinha / Donatto)
5 – “Eu Vou Dizer…” (Lou Garcia / Breder / Carolzinha / Iuri Rio Branco / Donatto)
6 – “Vozes Da Minha Cabeça” (Lou Garcia / Carla Sol / Nanno / Donatto)
7 – “Sinais” (Lou Garcia / Donatto / Iuri Rio Branco)
8 – “Peculiar” (Lou Garcia / Donatto)
9 – “Pior Que Eu Amo” (Lou Garcia)
10 – “Fique Bem” (Lou Garcia / Breder / Carolzinha
11 – “Puro Amor” (Lou Garcia / Breder / Carolzinha / Donatto)
12 – “Sexta-feira” (Lou Garcia / Carolzinha / Iuri Rio Branco / Donatto)
13 – “Escandalizar” (Lou Garcia / Donatto)
14 – “Reservado” (Lou Garcia / Donatto)

Leonardo Lichote
Outubro de 2025