Relançado em vinil pela Universal Music Brasil dentro do projeto “Safra 76”, o álbum é simbólico do período, unindo autobiografia, crítica social e uma nova linguagem urbana
Leonardo Lichote
“Alucinação”, segundo álbum de Belchior, está sendo relançado em vinil splatter pela Universal Music Brasil, como o primeiro movimento do projeto “Safra 76”, que até o fim de 2026 lembrará discos daquele ano presentes no acervo da gravadora e que completam a partir de agora cinco décadas. Trabalho clássico do compositor cearense, “Alucinação” traz sucessos como “Como nossos pais”, “Sujeito de Sorte”, “Velha Roupa Colorida”, “Apenas Um Rapaz Latino-americano” e “A Palo Seco”. Motivos de sobra, portanto, para ele ter sido escolhido para inaugurar a série que trará também os álbuns “Cartola” (1976), “Cuban Soul: 18 Kilates”, de Cassiano, e “Falso Brilhante”, de Elis Regina, todos em edições especiais.
Na faixa-título do álbum, que abre o lado B, Belchior nos oferece a chave para entendermos a natureza da alucinação evocada. Não se trata da suspensão da realidade, de um descolamento do mundo físico. Na verdade, é exatamente o contrário, como esclarecem os versos: “A minha alucinação é suportar o dia a dia/ E meu delírio é a experiência com coisas reais”.
Aí está o núcleo do álbum. Depois dos sonhos da década de 1960, com a liberação sexual, as experiências com drogas, o esoterismo, a resistência artística contra a ditadura militar, a explosão de criatividade musical capitaneada no exterior pelos Beatles e no Brasil pela geração dos festivais, viera o despertar duro. John Lennon anunciou que o sonho havia acabado, e por aqui a ditadura havia recrudescido a partir de 1968, com o AI-5 abrindo os chamados “Anos de chumbo”. É nesse território de desencanto com o passado recente, por um lado, e de sede de futuro, por outro, que Belchior ergue este “Alucinação”.
O disco se afirma como uma proposta de reorganização da MPB diante de um país e um tempo que não permitiam ilusões. Belchior abandona o simbolismo difuso da década anterior e aposta numa escrita direta, urbana, marcada por autobiografia e crítica social — afinada com uma poética da contracultura que se firmava naquele momento da música brasileira.
O tom é de urgência: versos longos, quase falados, e um vocabulário que aproxima a canção do dia a dia. “Apenas Um Rapaz Latino-Americano”, por exemplo, abre o disco com Belchior apresentando — numa autodescrição — seu chão, sua geração, sua condição financeira e seu lugar na sociedade brasileira. Sem disfarces, incluindo a ironia ao “antigo compositor baiano”, como ele se refere a Caetano Veloso — sinalizando sua visão de que a geração anterior da MPB deveria ser superada.
A produção de Marco Mazzola ajuda a consolidar a linguagem que ele propunha ali. O disco cruza elementos da música regional nordestina com o léxico elétrico da metrópole, apoiado nos teclados e arranjos de José Roberto Bertrami. O resultado é uma sonoridade híbrida — folk, blues, soul, baião — que reforça a própria experiência narrada nas letras: a travessia do Nordeste ao Sudeste, o choque com a cidade, a fricção entre expectativa e realidade. Em “Fotografia 3×4”, o triângulo tocado devagar sublinha a memória dura da chegada ao Rio; em “Não Leve Flores” e “Antes do Fim”, o country surge como comentário sobre deslocamento e destino; em “A Palo Seco”, a estética sem ornamentos casa com o projeto poético: “canto torto feito faca”.
A capa, fotografada por Januário Garcia e tratada com o efeito de solarização pela equipe da gravadora, sintetiza essa travessia: um retrato urbano, direto, sem glamour, coerente com o realismo do álbum.
Duas canções do disco estouraram na voz de Elis Regina naquele mesmo ano: “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”. Isso ampliou a circulação do álbum e ajudou a empurrá-lo para o centro da vida cultural brasileira. Mesmo antes de completar um mês, “Alucinação” já vendia dezenas de milhares de cópias. Ao mesmo tempo, a recepção crítica em 1976 foi dividida: enquanto uma parte da imprensa via no disco uma renovação formal — letras extensas, dicção dylaniana, mistura de gêneros — outra o considerava excessivamente obsessivo em sua busca pelo novo. Essa fricção explica, em parte, sua permanência.
Cinco décadas depois, “Alucinação” segue sendo um marco por transformar o desencanto em linguagem e por ancorar a canção num realismo que dialoga com a experiência concreta da juventude da época. O relançamento em vinil recoloca o álbum como documento desse momento histórico, mas também como obra que continua a falar ao presente — pela clareza, pela coragem estética e pela recusa em fugir da realidade.
As informações e novidades da “Safra 76”, estarão nas redes sociais da Universal Music Brasil e Universal Music Store. Saiba mais sobre esse lançamento aqui: https://www.umusicstore.com/belchior .
