Guitarra entre sinos e sintetizadores
Leonardo Lichote
Um disco natalino de Robertinho de Recife? Apesar de surpreendente e original, a ideia que se concretiza agora no álbum “Rapsódia de Natal” é profundamente coerente com a relação do músico com a data. Lançar-se nessas canções, para ele, é visitar um território pessoal. O guitarrista que atravessou frevo, metal, música infantil, pop eletrônico, Jovem Guarda, psicodelia recifense e o circuito dos grandes estúdios brasileiros mergulha nesse repertório clássico não como exercício de estilo ou mera jogada comercial, mas como gesto espiritual.
— Natal pra mim é uma data muito importante — conta Robertinho — Vários acontecimentos importantes na minha vida se deram no Natal. Foi durante o Natal que eu recebi um presente de Deus.
Robertinho explica que, após um grave acidente, ficou “dois anos sem tocar”, com a mão cheia de parafusos e placas de titânio, até que justamente num 25 de dezembro voltou a fazer música:
— No dia de Natal, eu só com dois dedos, voltei a tocar. Filmei isso e mandei pra minha família: “Ó, tô conseguindo tocar”. E é uma honra pra mim poder fazer um disco em que as músicas são todas direcionadas a Jesus.
É sobre esse eixo biográfico e íntimo marcado pela fé — um corpo que renasce no Natal — que “Rapsódia de Natal” se ergue. O disco, gravado apenas por Robertinho e seu filho, Rob Endraus, nasce de uma convivência criativa de 24 horas por dia.
— Eu falei: “vou fazer esse disco só eu e ele”. Pai, filho e Espírito Santo — ele brinca, rindo do trio que formam no estúdio, mas falando sério sobre a intimidade do projeto.
Rob, vindo da música eletrônica, assume a produção e cria a moldura sintética onde a guitarra se move.
— Preferi que ele me dirigisse. Eu só deixo porque ele é mais bravo que eu — faz graça, explicando que o filho é quem domina com mais precisão os timbres, os sintetizadores, o vocoder, o ambiente futurista do disco.
Diferentemente do tom virtuosístico de “Metal Mania” e outros álbuns clássicos de sua carreira, desta vez Robertinho buscou outra postura:
— Procurei tirar o meu ego. Não tem aquela fritação do guitarrista. Eu quis fazer um disco simples, para quem quer ouvir um disco de Natal. Quando eu toco música sacra, eu toco com reverência. Não é hora de eu ficar dizendo “olha como eu sou bom”. Respeitei as canções.
A simplicidade, porém, tem camadas de complexidade. Os arranjos, todos pensados a quatro mãos, revelam esse equilíbrio entre solenidade e experimentação. Cada faixa revela essa tensão entre o canto natalino tradicional e a vibração eletrônica que Rob puxa para o centro da narrativa.
— É como um filme de Natal futurista — define Rob. — Usamos alguns instrumentos tradicionais, respeitamos a estrutura original das músicas. Mas são músicas atemporais, e por isso podemos adaptar com elementos novos, dançantes. As pessoas podem esperar uma aventura natalina.
“Silent night” aparece em névoa new age, com sintetizadores de suspensão, como se Robertinho tocasse num vitral. “Santa Claus is coming to town” vira um electro-rock de voz robótica, uma espécie de Daft Punk tropical, onde a guitarra funciona como corrente de luz num arranjo de desenho animado. Em “Jingle bells”, Robertinho aplica tapping — técnica de tocar martelando as cordas — do início ao fim, não como virtuosismo exibicionista, mas como modo de brincar com a melodia, deslocando-a para um terreno elétrico e ritmado.
Em diversas faixas, a guitarra parece atravessar a eletrônica como uma peregrina, sempre marcada pela clareza melódica que Robertinho preserva até quando irrompe o metal. É o caso de “What child is this? (Greensleeves)”, que visita a atmosfera das baladas do heavy metal clássico, ou de “Gloria in excelsis Deo”, onde o clima é épico e a guitarra assume protagonismo, com o músico se erguendo como um “guitar hero” em meio a sintetizadores galopantes. “White Christmas”, com slide havaiano, mistura sinos e eletrônica num clima solar. O mesmo gesto se repete em “Rockin’ around the Christmas tree”, de vibração rockabilly, e em “Let it snow! Let it snow! Let it snow!”, que recebe um brilho fox com neon oitentista.
“Vaterland, in deinen Gauen” deixa que timbres associados aos arranjos natalinos tradicionais atravessem a textura eletrônica, como se o hino respirasse entre duas épocas. “Joy to the world” se transforma numa catedral eletrônica, no qual órgão, guitarras e beats constroem um espaço de celebração simultaneamente solene e futurista. Já “Adeste fideles (O come, all ye faithful)” parte de uma influência clara de Vangelis, numa espécie de sci-fi sacro, sobre um chão eletrônico que vai ficando cada vez mais abstrato, mais contemporâneo. O álbum encerra com o “Glory march medley”, combinação de “Battle hymn of the republic”, “Ode to joy” e uma “Glory fugue” inédita, numa marcha épica que poderia fechar um episódio clássico de “Star Wars” — só que transposto para uma noite de Natal à beira-mar, numa rave numa praia nordestina.
A ideia do disco nasceu de um telefonema de Miguel Afonso, A&R da gravadora, perguntando: “Cara, tive uma ideia maluca. Você nunca pensou em gravar um disco de Natal?”. Robertinho riu, mas a provocação ficou.
— Levantei o repertório, sentei com o Rob, e começamos a viajar — lembra.
As canções escolhidas formam a espinha dorsal do cancioneiro natalino global. Escritas por compositores como Johann Sebastian Bach, Irving Berlin e Mendelssohn, elas ajudaram a moldar a sonoridade do Natal em diferentes séculos. As versões célebres que cada faixa carrega — de Bing Crosby a Elvis, de Nat King Cole a Frank Sinatra, dos Jackson 5 a Andrea Bocelli, de Mariah Carey a Celine Dion — formam a memória afetiva com a qual Robertinho e Rob dialogam.
Há no repertório, portanto, um arco amplo que vai do hino litúrgico à canção pop, do coral inglês do século 19 ao swing norte-americano do século 20. Ao reler essas obras, Robertinho se coloca dentro de uma linhagem internacional, unindo reverência e originalidade. O resultado é uma abordagem que reconhece a solenidade dessas canções — sua função espiritual, sua força simbólica — e ao mesmo tempo as desloca para um território onde convivem guitarra, vocoder, sinos, catedrais e luzes de neon. As faixas chegam como se tivessem atravessado uma longa estrada: compostas no século 19, consagradas no século 20, e agora reinterpretadas por um músico brasileiro que carrega mil escolas em sua guitarra.
Algumas faixas foram incluídas por sugestão da equipe internacional da Universal, como “Let it snow! Let it snow! Let it snow!”. Outras ressurgiram depois de novas audições, caso de “Santa Claus is coming to town”. Robertinho achava a música “chata pra caramba”, mas depois que ouviu a versão do Jackson 5 mudou de ideia:
— Achamos legal pra caramba. Aí o Rob teve a ideia do vocoder, que deu um “uau”.
No conjunto, “Rapsódia de Natal” reafirma algo que Robertinho repete com convicção: “Cada disco meu é uma vertente diferente. Eu toco música, não toco um estilo de música”. De frevo com Hermeto ao metal que influenciou o Sepultura, do pop infantil ao new wave, ele sempre desfez fronteiras. Aqui, faz isso com serenidade, fé e invenção.
O álbum nasce também de um momento delicado, no qual novamente o Natal se afirma para ele como ponto de renascimento.
— Fiz esse disco um mês depois de ter um infarto. Meu terceiro — conta Robertinho — Foi uma nova chance. Obrigado, Deus.
“Rapsódia de Natal” é um gesto de celebração — íntimo, moderno, sacro, elétrico. Um disco que traduz a marca de Robertinho: o encontro improvável entre devoção e experimentação, tradição e eletrônica, passado e reinvenção. Um disco simples e profundo, alegre e reflexivo como a data que ele celebra.